Traição.
- oneprince.
- 27 de ago. de 2016
- 2 min de leitura
É do fundo do ônibus que tento arrancar detalhes dele - que não é o meu amor, nem um venturo amante, apenas alguém que me esbarro nos dias de semana. Nunca o vi sorrir e o considero misterioso. Ele tenta ser acessível, mas considero fachada. Se não for isso, não saberei explicar o desejo que tenho de desvendá-lo, de fitá-lo nos olhos, de tocar o seu rosto e perceber ao longo dos meses a sua barba rala se tornar protagonista em um rosto coberto de possibilidades de expansão. Estou sentado do lado direito e ele do esquerdo. Ambos podemos encarar as casas, as pessoas, a vida passando por nós da janela. Não me aguento, fito suas panturrilhas por mais de dois segundos e volto para o meu lugar: as ruas, as árvores, o céu azul. Há pouco, sentou-se um homem negro entre nós, de trinta e pouco anos, agora, posso encará-lo sem que perceba. Imediatamente, fixo em seus braços e, pelos deuses, excito-me ao pensar naquela mão me tocando. Minunciosamente, noto que está usando shorts jeans, relógio ostentação, tênis preto, regata cinza - me inclino para frente para ter certeza - e, eu não entendo, que porra é essa? Por que estou narrando o que ele está vestindo? Por que isso hoje? Por que isso agora? Lamento não ser a roupa que o serve; dói idealizar que ele tenha que ser alguém que não queira ser; sinto tanto por não conseguir me aproximar dele, fazê-lo mudar de ideia, torná-lo - expô-lo, porque pelo o que pude apurar, ele já é - interessante; colocá-lo dois passos atrás do resto do mundo. Na rotatória, vejo-o fitando o lado de fora. O que ele viu de tão interessante?, pergunto-me. Não importa, isso acaba sendo bom pra mim: vejo suas costas e o desenho da regata, vejo sua pele branca e imagino a tocando. Ele retoma a posição de início, franze a testa - por que diabos ele a franziu? -, guardo meu caderno apressadamente, levanto-me, ajeito a mochila nas costas, estico a camisa, faço um movimento de pés, o ônibus chega ao terminal, o motorista abre a porta e ele passa por mim. Por que não o agarrei?, me indigno. Desço e o deixo na lotação, eu sei que no dia seguinte, vou encontrá-lo novamente e também sei que tudo será diferente: estarei lendo, empolgado demais para notá-lo.
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